Vivemos uma transição. Velhas respostas não aderem mais às novas perguntas. Há urgências que dependem crucialmente de uma travessia. A fome é a mais premente entre elas. A segurança alimentar pode ser uma das velas da baldeação que o mundo reclama, rumo a um desenvolvimento mais justo e sustentável, a salvo da desordem financeira atual.
Para 1/7 da humanidade o lugar da crise é o prato vazio; seu nome é insegurança alimentar. Somos realistas na escolha. Utopia é acreditar que haverá solução para a economia à margem da sociedade.
Erguer pontes entre os extremos da incerteza requer, de um lado, dotar a iniciativa local da contrapartida de cooperação internacional que a revigore e amplifique. De outro, prover a capilaridade indispensável à governança global, hoje desprovida de canais de transmissão que lhe dêem legitimidade na vida das nações.
A primeira providência é acelerar a reforma dos mecanismos de cooperação, incluindo-se aí a estrutura da própria Organização das Nações Unidas para Alimentação e Agricultura, a FAO, cuja direção eu assumo em janeiro de 2012.
Fazer dessas instituições uma fronteira avançada da democracia e da nova governança global pressupõe, antes de mais nada, adotar a descentralização como seu idioma operacional obrigatório.
É o que buscaremos. A descentralização representa a alavanca mais realista para dar velocidade aos principais compromissos de nosso mandato: erradicar a fome; acelerar a transição rumo a modelos sustentáveis de consumo e produção de alimentos; promover regras mais justas no comércio de alimentos e, finalmente, reforçar a cooperação Sul-Sul, que se soma à indispensável parceria Norte-Sul.
Cada um desses pilares requer uma contrapartida democrática de coordenação entre a esfera local e a global. Esse lócus precisa ser construído. Sua inexistência explica em grade parte um dos maiores déficits evidenciados pela crise: o déficit de democracia diante da nova morfologia do mercado e da sociedade em nosso tempo.
Não se trata de escolher uma bala de prata, mas de um método que incentive as iniciativas nacionais de fomento agrícola e combate à fome, ao mesmo tempo em que contempla o vazio global de planejamento e participação, realçado pela desordem financeira mundial. A boa notícia é que não partimos do zero. Existe um ordenamento de prioridades sendo construído pela FAO em parceria com os governos, a sociedade civil e os movimentos sociais.
Nossa gestão será construída sobre o saldo desse acervo e os imperativos do futuro. Milhões de vidas em risco e nações em transe dependem do passo seguinte da história. Um número expressivo de países pobres enfrenta redobradas dificuldades para avançar na luta contra a fome e a miséria em meio a uma crise que promete ser longa, corrosiva e abrangente. A Organização das Nações Unidas para Alimentação e Agricultura não pode dispensar a esses países outro tratamento que não seja a prioridade máxima. É o que faremos.
As três principais turbinas do mundo rico - Europa, EUA e Japão - foram comprometidas. Juntas, elas representam mais de 70% do PIB mundial. Sem desobstruir a dupla pista da cooperação, feita de capilaridade local e articulação global, as nações mais pobres serão as mais afetadas. Os Objetivos de Desenvolvimento do Milênio (ODM), que tem na segurança alimentar seu eixo seminal, patinam nesse ambiente inóspito.
Nosso desafio é desobstruir rotas e arregimentar energias para revigorá-las. Com sua experiência reconhecida na área de segurança alimentar, o Brasil deve equipar-se institucionalmente para fazer desse trunfo o principal eixo de uma política revigorada de cooperação internacional.
A Agência Brasileira de Cooperação (ABC) reclama maior estrutura: seu orçamento de US$ 60 milhões/ano é 100 vezes inferior ao de similares, como o espanhol e o holandês e 500 vezes menor que o americano. Não se trata de uma gincana, mas de prover meios para intensificar a transferência de conhecimento em áreas onde temos reconhecida liderança.
A Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuária (Embrapa) deve acelerar sua internacionalização como o maior centro de agricultura tropical do planeta. Para isso precisa se dispor a fazer não apenas cooperação científica com escritórios no Japão, França e Estados Unidos, mas também cooperação técnica com presença compatível com as prioridades da política internacional brasileira para a África, Caribe e America Latina.
O Conselho Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional (Consea), não deve subestimar sua experiência ímpar na construção do principal alicerce da luta contra a fome: a participação da cidadania. A Companhia Nacional de Abastecimento (Conab) e outros organismos afins não podem mais relevar estruturas condizentes com a responsabilidade internacional do país.
A representatividade ampliada do Comitê de Segurança Alimentar Mundial, composto de governos, cientistas, organizações da sociedade civil e lideranças sociais cuidará de levar a "escuta forte", sobretudo das nações mais pobres, para o interior da FAO. Mais que isso, trata-se de reforçar uma cultura de responsabilidade histórica para assegurar a destinação maciça de recursos humanos e orçamentários às tarefas prioritárias. Hoje, mais que nunca, a estrutura não pode sobrepor-se à atividade-fim.
Não são palavras lançadas ao vento. A concepção do nosso mandato obedece à evidência incontornável de que a superação da crise cobra um amplo engajamento na construção de um novo regulador capaz de reconciliar o crescimento e a sociedade em nosso tempo: a justiça social. Somos realistas na escolha: utopia é acreditar que haverá solução para a economia à margem da sociedade. Confiamos no apoio do bom senso engajado para que os nossos compromissos se enlacem ao mundo por meio da ação.
*José Graziano da Silva é diretor-geral eleito da Organização das Nações Unidas para Alimentação e Agricultura (FAO na sigla em inglês)