O Projeto Político Pedagógico (PPP) da Rede de Educação Cidadã (Recid), depois de trilhar diversos caminhos da militância, flutuar por diversos campos do saber, despertar antigas e apresentar novas e renovadas utopias, enfim, mostra sua identidade. Seu último princípio, o nº. doze, como os outros onze que o antecedem, tem nome e sobrenome. "Vivência de uma Mística da Militância e da Mudança”. Não apenas por isto, mas, sobretudo por isto, deve ser, necessariamente, o primeiro referencial da reflexão recidiana sobre a mística. Remete-nos de imediato à mística do caminho. Convida-nos a construirmos e buscarmos novos caminhos. Andar pelo mesmo caminho, pisando sempre antigas e já conhecidas trilhas, forradas de folhas secas e cheias de chiados, é bom, é romântico e agradável, mas nos leva irremediavelmente ao mesmo igarapé.
A mística tem que ver com a vida, com os caminhos da vida e com o nosso jeito de neles caminhar. E nada disto é estático, nada disto está parado, ao contrário, tudo é movimento, é dinâmico. Nada disto está pronto, é no caminho, no despertar das consciências, que nos descobrimos inacabados, (FREIRE, p. 62).
A mística exige liberdade, que exige militância permanente, que, por sua vez, se revolucionária, é grávida de mudança e mudar exige correr riscos, "O homem é livre para escolher seu caminho e, não obstante, deve aceitar as conseqüências de sua escolha”, (FROMM, 1981, p. 95). Mudar é uma questão de vida, o mundo, a realidade muda se eu mudar. A mística da Educação Popular é feita de ousadia e de criatividade.
Uma educação em que a liberdade de criar seja viável necessariamente tem de estimular a superação do medo da aventura responsável, tem de ir mais além do gosto medíocre da repetição pela repetição, tem de tornar evidente aos educandos que errar não é pecado, mas um momento normal do processo gnosiológico (FREIRE, 2000, p. 100).
Minha militância não pode ser eucêntrica, sob pena de minha mística ser reduzida a um misticismo que a ninguém encanta e que nada muda. Assim, não teremos militância porque minha ação não passa de ativismo, de oba, oba. E este ou é estéril, ou está a serviço da manutenção, não da mudança. Eu até posso morrer por meu grupo, pela causa que nos move - muitos foram os que morreram - mas, um militante revolucionário jamais mata o grupo para garantir sua própria sobrevivência. Seja sobrevivência política, ideológica ou no poder. O que faz uma liderança revolucionaria, um (a) Educador (a) Popular é a mística que a move. A mística de sua militância manifesta-se na coerência entre sua fala e sua ação. Se a minha prática fala mais alto que a minha fala, e é contraditória a ela, ninguém escuta o que eu falo. Quando uma liderança se acomoda na zona de conforto e faz do cargo ou da posição que ocupa uma profissão, acontece um utopicídio. Morrem todos. A liderança, a mística, a militância, a possibilidade de mudança e a causa. O grave é que os mortos não sabem que morreram. Não podem sequer ser enterrados. Poderemos aqui fazer uma comparação entre a mística e a esperança, para tentar desfazer alguns equívocos que as envolve. Ao falar da esperança, diz Erich Fromm,
O que é ter esperança?
É, como pensam muitos, ter desejos e anseios? Se assim fosse, os que desejam mais e melhores carros, casas e aparelhos seriam pessoas esperançosas. Mas não são; elas são pessoas que cobiçam mais consumo e não pessoas esperançosas. Será ter esperança, se o objetivo da esperança não é senão uma vida mais plena, um estado de maior vivência, uma libertação do enfado eterno, ou para usar um termo teológico, a salvação, ou um termo político, a libertação? (FROMM, p. 19).
Assim, seguindo o raciocínio de Erich Fromm, em seu livro, "A revolução da esperança, perguntamos também nós: o que é a mística? É, como pensam muitos, assistir a um belo arrebol, vestido em trajes litúrgicos, numa praia deserta? Se assim fosse, não seria a mística algo inerente à vida. Não seria algo ao alcance de todos, mas apenas para alguns que a procurassem. Não seria ela algo que vem de dentro, que brota das entranhas da esperança humana. Que se expressa num sorriso, mesmo quando aquele que sorrir está com fome.
A mística é Deus, e "Deus é como o sol que se dá a todos indistintamente, abundantemente. Acontece que cada um de nós é uma janela, e alguns possuem uma cortina tão espessa que não há meio de o sol entrar, embora ele bata no vidro” (BETTO, 1999, p. 60). A mística da militância numa perspectiva da Educação Popular, tem como pressuposto fundamental uma relação dialógica. Nesta relação todos devem ter a oportunidade de expressar plenamente seu mundo, de pronunciá-lo, e ter igualmente o reconhecimento como sujeito neste mundo. A liderança que não proporciona esta relação, ou antes, a inibe, não só puxa a cortina, mas fecha uma janela para o sol. Não pode, portanto ser revolucionária. A mística também consiste em não focar a ação na justificativa de nossas verdades. Quando a gente se preocupa muito em provar, perde na capacidade de sentir. Na mística o eu e o tu se encontram, inspirados por um Outro, e formam umnós. O nós só o será plenamente se não anular nenhum dos três indivíduos que o formam.
A mística não é algo que se possa fazer, executar como se fosse uma tarefa ou a etapa de uma jornada. Para se ter é preciso ser. A primeira diretriz do princípio doze do PPP da RECID diz exatamente, "Vivenciar a mística como sentimento de pertença, gratuidade, construção coletiva e cultivo de valores, sem perder a visão e a prática do objetivo maior, a libertação”. A mística na militância da Educação Popular nos faz transcender as barreiras da racionalidade, nos faz efetivos e afetivos, e nos leva a ver como nas palavras de São Gregório de Nissa, "Como durante a noite é mais visível o invisível?” (VELASCO, 2003, p. 31).
A mística nos remete à Experiência religiosa, a um poder estranho que se sente, mas não se explica. "Ao examinar a história das religiões é possível notar que diante desse poder a atitude humana, num primeiro momento, é de espanto, de pavor e, sucessivamente, de fé”(ALLES BELLO, 2000, p. 110). Poderíamos aproximar a mística, conforme a temos definido aqui, da ação poderosa e ruidosa do silêncio que na sua hora e do seu jeito, fala mais que um longo discurso. Fala à alma, marcando com o símbolo do comprometimento militante, o corpo e impulsionando a espiritualidade para, invadindo os nichos psicológicos e subjetivos, atingir a totalidade humana. Assim, superando a tentação constante de fragmentar a ação em momentos de mística e trabalho, podemos até dizer que, "O poder simbólico é, com efeito, esse poder invisível o qual só pode ser exercido com a cumplicidade daqueles que não querem saber que lhe estão sujeitos ou mesmo que o exercem”, (BOURDIEU, 1989, p. 8). A melhor maneira de situarmos a mística como dimensão transcendente, mas repleta de imanência, do agir militante é de subordinência(1), porque é ela quem define as relações o limite de nossas conquista. A subordinação da razão e do ativismo espontaneista à reflexão e à meditação, ou seja, à poesia. E, ao mesmo tempo sua independência, pois ninguém é místico por um dia nem por força de lei. É a militância, como estado de plena liberdade, toda mística, que muda o caminho e o jeito de caminhar quando necessário. Quando alguém dorme até mais tarde porque até às 09h30 "é só a mística mesmo”, e ela não gosta de mística, não está fazendo militância, está fazendo trabalho forçado e não sabe. É escravo de si mesmo e de sua in-consciência e não sabe. Este é o pior tipo de escravidão. Se é que existe um tipo melhor. A mística, conforme a concebemos nesta reflexão, tem muito do que diz Paulo Freire, na orelha do livro Cartas à Guiné-Bissau: "Este livro apresenta a fascinante experiência de aprender primeiro, ensinar depois e continuar a aprender ensinando”. A mística, por fim, é um eterno aprender, um permanente ensinar e se deixar surpreender pelos encantos da simplicidade.
Curitiba, 23 de Novembro de 2011.
Referências Bibliográficas
ALES BELLO, A. A Fenomenologia do Ser Humano: traços de uma filosofia do feminino. Bauru-SP: Edusc, 2000;
BETTO, Frei. Mística e Espiritualidade. 4ª ed. Rio de Janeiro: Rocco, 1999;
BOURDIEU, Pierre. O Poder Simbólico. Rio de Janeiro-RJ: Bertrand, 1989;
FREIRE, Paulo. Educação Como Prática da Liberdade. 30ª ed. São Paulo: Paz e Terra, 2007;
FREIRE, Paulo. Pedagogia da Tolerância. São Paulo: UNESP, 2004;
FREIRE, Paulo. Pedagogia da Indignação. 7ª ed. São Paulo: UNESP, 2000;
FROMM, Erich. A Revolução da Esperança. Edição integral. São Paulo: Círculo do Livro;
FROMM, Erich. O Espírito de Liberdade. 4ª ed. Rio de Janeiro; Zahar1981;
RECID. Rede de Educação Cidadã. Projeto Político Pedagógico. Brasília, 2007;
VELASCO, Juan Martin. Doze Místicos Cristãos. Petrópolis-RJ: Vozes, 2003.
João Ferreira Santiago
Teólogo, Poeta e Militante. É Educador Popular das Comunidades Eclesiais de Base no Paraná. Membro da equipe do Talher Nacional de Julho/2005 a Janeiro/2011