"A alegria não chega apenas no encontro do achado, mas faz parte do processo da busca. E ensinar e aprender não dar-se fora da procura, fora da boniteza e da alegria". Paulo Freire

quinta-feira, 19 de setembro de 2013

Carta de Paulo Freire a Clodomir Santos de Morais em outubro 1973, durante exílio


SANTOS DE MORAIS, Clodomir. Cenários da Libertação: Paulo Freire na prisão, no exílio e na universidade. Porto Velho, Edufro (Editora da Universidade Federal de Rondônia), 2009, p. 104-106.

Meu caro amigo Clodomir,

Acabo de receber, com a emoção com que você pode imaginar, o pacote com a carne e um carinhoso cartão – cabra da peste. Até em Honduras você encontra carne de sol! E a emoção não foi apenas “gastronômica”; a emoção do guloso que você bem sabe que sou. A emoção foi a de ver no seu gesto de lembrar-se do amigo distante e, superando as dificuldades aduaneiras, fazer chegar a Santiago, ao pau-de-arara, companheiro de “férias” de Olinda. A amizade verdadeira nos prende. Não tenho nada dessas coisas pra lhe mandar e a Célia, mas estou enviando-lhes um exemplar do meu ensaio, edição brasileira: “Educação como Prática da Liberdade”.
Você já deve ter recebido – se já chegou dessas andanças, de que você com um humor formidável, manda tarjetas pra todo mundo (o que também fiz de N. York) – a minha carta em resposta a uma sua, dirigida ao INAP. Carta por sinal de que produzi trechos ao Álvaro Faria, cujo “endereço” lhe mandei também.
Na tal carta lhe falava do fracasso das gestões para minha ida para a FAO que, depois de mais de 6 meses, resolveu que eu deveria ser encaminhado à Unesco...
Dizia-lhe também de um certo desencanto, não com o meu trabalho mesmo, com que sei que ter ainda que fazer; um desencanto geral, uma sensação de injustiça objetiva o que, tendo possibilidade – o que sei ser difícil pra você – de me engajar por aí, que iria.
Não sei se cheguei a lhe falar no novo ensaio que acabei de escrever e em cujo”borrador” estou trabalhando: “Pedagogia do Oprimido”. Nele (tento) ensaiar, ainda insipientemente, ligar esta pedagogia a uma possível “Teoria da ação”. Esta coisa me preocupa hoje intensamente. Li, reli, estudei o “Que Fazer?”, bem sabe de quem. Estou estudando uma séria de trabalhos clássicos deste time todo. Cada vez mais me convenço que devemos de encontrar uma “Teoria da Ação” que brote de nós mesmos. Temos de criá-la na práxis. Como lembra, antes de pôr no papel, costumo em aulas, ir “gotejando” as minhas idéias. Nas aulas e nas conversas.
Recentemente, comecei a dar algumas aulas sobre as possíveis Teorias da Ação que estão implícitas nas contraditórias posturas – a do anti-dialógico e a do dialógico. Gostaria, inclusive, de conversar um pouco com você, ainda que por carta, sobre isto.
Um outro ponto que me vem desafiando dentro destas mesmas reflexões é a das contradições que se instauram ao instaurar-se uma liderança revolucionária. Contradições como sempre percebidas por elas. É claro que uma “liderança” revolucionária se estabelece como resultado de um ato total de ação e de reflexão crítica de uma liderança histórica critica concreta a ser transformada. Ela surge como resultado de uma outra contradição – a dos opressores-oprimidos. É a contradição opressor-oprimido, metidos ambos em uma situação concreta – a de opressor que gera o surgimento das lideranças revolucionárias. Estas não são, é obvio, propriamente a superação da contradição que as gera. Elas buscam esta superação. Acontece, porem, que ao aparecerem no cenário da situação concreta em que jogam os pólos contraditórios opressor-oprimido, elas se vão fazer também contradição.
I) Contradizem o pólo opressor. A elite dominante.
II) Contradizem as próprias massas oprimidas. E isto é o que não vêem e percebem, em regra.
Ao constituir-se como lideranças revolucionárias no momento em que, em um gesto de autentica solidariedade, se reconhecem nos oprimidos, pensam que só isto lhes constituem como lideranças revolucionárias. Parece-lhes um absurdo que também contradigam as próprias massas oprimidas. Não percebem que estas, porque oprimidas, “hospedam” ao opressor “dentro” delas. Na dualidade do seu ser, são e não são. Mantendo ao opressor em si, introjetado nelas – temendo a liberdade estas massas oprimidas em um destes paradoxos horríveis têm nas elites revolucionárias uma contradição também.
Por que não percebem esta contradição é que muitos dos grupos revolucionários terminam por descrer das próprias massas que não entendem, assumindo as seguintes alternativas: a) trabalho de cúpula; b) manipulação das massas tão reacionária quanto a manipulação dos grupos dominadores. Por esta razão, terminam sem ser lideranças. No meu entender, somente poderiam tornar-se lideranças se conseguissem não a conquista das massas mas a sua conscientização, com a qual estas se inseriram na história também. O seu trabalho não seria o de quem, descrendo das massas, pretenda resgata-las, mas o de quem, humildemente se convencesse de que, se ninguém se liberta sozinho, também ninguém liberta ninguém – os homens se libertam em comunhão. Parece-me que o grande trabalho dessas lideranças Não está em instituir-se a si mesmas no auto-decreto, em vanguarda, no sentido anti-dialógico, mas em transformar-se, no processo, em vanguarda no sentido dialógico. A “superação” e esta quase aberrante existente contradição entre as lideranças e as massas somente se logra na medida em que as massas extrojetando o opressor de “dentro” de si se reconhecem destemerosamente nas lideranças. A Pedagogia do Oprimido, como a vejo, tem um papel enorme nisto tudo.
Fala-se, às vezes, de que até hoje não houve nenhuma experiência dialógica nas revoluções a não ser depois da tomada do poder. Isto não é argumento: as revoluções são históricas como o homem que as faz. O que nunca foi feito, porque inclusive o clima histórico não permitisse antes, não está proibido de ser feito; ademais, dizer que o que nunca foi feito não pode ser feito não é dialético... Não há novo nenhum que seja superposto ao velho de fora. Todo novo sai é do velho mesmo, na medida em que as novas condições o exigem.
Ando mesmo preocupado é com tudo isto, a cujos pontos direta ou indiretamente me refiro a Pedagogia do Oprimido; teremos que repensar muitas coisas; fala-se, quase sempre, de uma célebre afirmação do “Que Fazer” – “não há revolução sem teoria”, cuja tradução exata seria: “não há revolução: a) com palavreado, blá-blá-blá; b) não há revolução com puro ativismo mas com ação e reflexão que são práxis”. Esquece-se de que a teoria a ser feita e refeita na ação e na reflexão não é tarefa de uns quantos privilegiados, que absolutizando a ignorância das massas, descrendo delas, doassem a elas o que fazer, esquece-se de que esta indispensável teoria tem de nascer, gerar-se, brotar do encontro dialógico dessas massas com as lideranças. E porque se esquece tudo isto se faz ativismo e manipulação em nome da revolução...
Se estivéssemos pessoalmente conversando me alongaria com exemplos.
Voltemos à carne de sol. No dia em que chegou comi-a com farofa. Um pouquinho de farinha que nos sobrara nos levou a Candeias ou ao velho rio Doce.
Todos graças a Deus bem. Abraços a você, a Célia e ao pimpolho, neste abraço fraterno, o do seu velho amigo Paulo.

23 de outubro 1973.