SANTOS DE MORAIS, Clodomir. Cenários da Libertação: Paulo Freire na prisão, no exílio e na universidade. Porto Velho, Edufro (Editora da Universidade Federal de Rondônia), 2009, p. 104-106.
Meu caro amigo
Clodomir,
Acabo de receber, com a emoção com que você
pode imaginar, o pacote com a carne e um carinhoso cartão – cabra da peste. Até
em Honduras você encontra carne de sol! E a emoção não foi apenas
“gastronômica”; a emoção do guloso que você bem sabe que sou. A emoção foi a de
ver no seu gesto de lembrar-se do amigo distante e, superando as dificuldades
aduaneiras, fazer chegar a Santiago, ao pau-de-arara, companheiro de “férias”
de Olinda. A amizade verdadeira nos prende. Não tenho nada dessas coisas pra
lhe mandar e a Célia, mas estou enviando-lhes um exemplar do meu ensaio, edição
brasileira: “Educação como Prática da Liberdade”.
Você já deve ter recebido – se já chegou dessas
andanças, de que você com um humor formidável, manda tarjetas pra todo mundo (o
que também fiz de N. York) – a minha carta em resposta a uma sua, dirigida ao
INAP. Carta por sinal de que produzi trechos ao Álvaro Faria, cujo “endereço”
lhe mandei também.
Na tal carta lhe falava do fracasso das gestões
para minha ida para a FAO que, depois de mais de 6 meses, resolveu que eu
deveria ser encaminhado à Unesco...
Dizia-lhe também de um certo desencanto, não
com o meu trabalho mesmo, com que sei que ter ainda que fazer; um desencanto
geral, uma sensação de injustiça objetiva o que, tendo possibilidade – o que
sei ser difícil pra você – de me engajar por aí, que iria.
Não sei se cheguei a lhe falar no novo ensaio
que acabei de escrever e em cujo”borrador” estou trabalhando: “Pedagogia do
Oprimido”. Nele (tento) ensaiar, ainda insipientemente, ligar esta pedagogia a
uma possível “Teoria da ação”. Esta coisa me preocupa hoje intensamente. Li,
reli, estudei o “Que Fazer?”, bem sabe de quem. Estou estudando uma séria de
trabalhos clássicos deste time todo. Cada vez mais me convenço que devemos de
encontrar uma “Teoria da Ação” que brote de nós mesmos. Temos de criá-la na
práxis. Como lembra, antes de pôr no papel, costumo em aulas, ir “gotejando” as
minhas idéias. Nas aulas e nas conversas.
Recentemente, comecei a dar algumas aulas sobre
as possíveis Teorias da Ação que estão implícitas nas contraditórias posturas –
a do anti-dialógico e a do dialógico. Gostaria, inclusive, de conversar um
pouco com você, ainda que por carta, sobre isto.
Um outro ponto que me vem desafiando dentro
destas mesmas reflexões é a das contradições que se instauram ao instaurar-se
uma liderança revolucionária. Contradições como sempre percebidas por elas. É
claro que uma “liderança” revolucionária se estabelece como resultado de um ato
total de ação e de reflexão crítica de uma liderança histórica critica concreta
a ser transformada. Ela surge como resultado de uma outra contradição – a dos
opressores-oprimidos. É a contradição opressor-oprimido, metidos ambos em uma
situação concreta – a de opressor que gera o surgimento das lideranças
revolucionárias. Estas não são, é obvio, propriamente a superação da
contradição que as gera. Elas buscam esta superação. Acontece, porem, que ao
aparecerem no cenário da situação concreta em que jogam os pólos contraditórios
opressor-oprimido, elas se vão fazer também contradição.
I) Contradizem o pólo opressor. A elite
dominante.
II) Contradizem as próprias massas oprimidas. E
isto é o que não vêem e percebem, em regra.
Ao constituir-se como lideranças
revolucionárias no momento em que, em um gesto de autentica solidariedade, se
reconhecem nos oprimidos, pensam que só isto lhes constituem como lideranças
revolucionárias. Parece-lhes um absurdo que também contradigam as próprias
massas oprimidas. Não percebem que estas, porque oprimidas, “hospedam” ao
opressor “dentro” delas. Na dualidade do seu ser, são e não são. Mantendo ao
opressor em si, introjetado nelas – temendo a liberdade estas massas oprimidas
em um destes paradoxos horríveis têm nas elites revolucionárias uma contradição
também.
Por que não percebem esta contradição é que
muitos dos grupos revolucionários terminam por descrer das próprias massas que
não entendem, assumindo as seguintes alternativas: a) trabalho de cúpula; b)
manipulação das massas tão reacionária quanto a manipulação dos grupos
dominadores. Por esta razão, terminam sem ser lideranças. No meu entender,
somente poderiam tornar-se lideranças se conseguissem não a conquista das
massas mas a sua conscientização, com a qual estas se inseriram na história
também. O seu trabalho não seria o de quem, descrendo das massas, pretenda
resgata-las, mas o de quem, humildemente se convencesse de que, se ninguém se
liberta sozinho, também ninguém liberta ninguém – os homens se libertam em
comunhão. Parece-me que o grande trabalho dessas lideranças Não está em
instituir-se a si mesmas no auto-decreto, em vanguarda, no sentido
anti-dialógico, mas em transformar-se, no processo, em vanguarda no sentido
dialógico. A “superação” e esta quase aberrante existente contradição entre as
lideranças e as massas somente se logra na medida em que as massas extrojetando
o opressor de “dentro” de si se reconhecem destemerosamente nas lideranças. A
Pedagogia do Oprimido, como a vejo, tem um papel enorme nisto tudo.
Fala-se, às vezes, de que até hoje não houve nenhuma
experiência dialógica nas revoluções a não ser depois da tomada do poder. Isto
não é argumento: as revoluções são históricas como o homem que as faz. O que
nunca foi feito, porque inclusive o clima histórico não permitisse antes, não
está proibido de ser feito; ademais, dizer que o que nunca foi feito não pode
ser feito não é dialético... Não há novo nenhum que seja superposto ao velho de
fora. Todo novo sai é do velho mesmo, na medida em que as novas condições o
exigem.
Ando mesmo preocupado é com tudo isto, a cujos
pontos direta ou indiretamente me refiro a Pedagogia do Oprimido; teremos que
repensar muitas coisas; fala-se, quase sempre, de uma célebre afirmação do “Que
Fazer” – “não há revolução sem teoria”, cuja tradução exata seria: “não há revolução:
a) com palavreado, blá-blá-blá; b) não há revolução com puro ativismo mas com
ação e reflexão que são práxis”. Esquece-se de que a teoria a ser feita e
refeita na ação e na reflexão não é tarefa de uns quantos privilegiados, que
absolutizando a ignorância das massas, descrendo delas, doassem a elas o que
fazer, esquece-se de que esta indispensável teoria tem de nascer, gerar-se,
brotar do encontro dialógico dessas massas com as lideranças. E porque se
esquece tudo isto se faz ativismo e manipulação em nome da revolução...
Se estivéssemos pessoalmente conversando me
alongaria com exemplos.
Voltemos à carne de sol. No dia em que chegou
comi-a com farofa. Um pouquinho de farinha que nos sobrara nos levou a Candeias
ou ao velho rio Doce.
Todos graças a Deus bem. Abraços a você, a
Célia e ao pimpolho, neste abraço fraterno, o do seu velho amigo Paulo.
23 de outubro 1973.